O vencedor de 8 estatuetas carequinhas mostra que fez por merecer a avalanche de reconhecimento na mais famosa premiação do cinema mundial e nos outros grandes festivais por onde passou. Em linhas gerais,
Slumdog Millionaire (Milionário Favelado) chegou cumprindo duas missões: introduziu ao cinema de massa do Ocidente novos rostos, a paisagem e os conflitos presentes na Índia urbanóide - em geral reduzida ao Taj Mahal e encantadores de serpentes no imaginário dos habitantes deste lado do planeta - e com um recado claro, gritou ao ouvido de diretores e roteiristas da indústria de filmes do entretenimento fácil e finais felizes para que se permitam subir um degrau em sua estagnada escala evolutiva, principalmente nas etapas de contrução e desenvolvimento de narrativa.
O filme inicia apresentando três linhas de tempo simultâneas, todas em torno do personagem Jamal Malik (Dev Patel), um jovem que serve chá em um
call center de Mumbai, cuja fidelidade aos sentimentos de correspondência incerta que nutre por Latika (Freida Pinto) o leva ao mais popular programa de TV da Índia: "
Quem Quer Ser Um Millionário?", onde está a uma pergunta de se transformar em herói nacional pelo desempenho surpreendente. Jamal no programa, Jamal na delegacia, a vida de Jamal: as três tramas se misturam em uma bem executada edição em vai-e-vem sem confundir o espectador, sendo as passagens de tempo feitas entre imagens manipuladas sob um requinte poético.
Na tentativa de sintetizar a Índia enquanto cenário, o pecado pode estar na falta de pequenas contextualizações para um mergulho cultural mais proveitoso. Duas oportunidades passam batidas numa mesma seqüencia ao mostrar um grande trauma na vida do Jamal ainda menino. Nela, situa precariamente o país como um caldeirão de turbulências étnicas que culminam com massacres da população de minoria muçulmana por radicais hindus, mas remetendo apenas ao passado, quando fatos semelhantes ocorrem até os dias de hoje. Em seguida, no meio da fuga desesperada de Jamal, a religiosidade hinduísta emerge na aparição do Deus Rama, divindade que representaria a firmeza aos princípios que Jamal precisaria manter diante do acontecimento que acabara de levar sua mãe deste mundo e daria início a toda sorte de sofrimentos.
Mesmo sendo um filme que conta a história de Jamal e não da Índia, seis frases a mais no script resolveriam sem prejuízo pra a objetividade da narrativa poupando o espectador das dúvidas: "Por que saíram matando todo mundo?", "Se tem vários, porque apareceu justo aquele Deus azul?". Religiosidade oriental e questões políticas desprezadas, assistimos ao puro reducionismo ilustrando somente uma mera explicação para a razão do conhecimento de Jamal para mais uma das perguntas feitas durante o programa.
A trajetória de Jamal possui elementos similares à
Ramayana, épico da literatura sagrada hindu que descreve a saga vivida pelo Deus Rama em sua encarnação. Durante o exílio, Rama teve sua amada e casta, Sitadevi, sequestrada pelo demônio de dez cabeças, Rávana, que reinava no vizinho Sri Lanka. No filme, Jamal conhece sua eleita, Latika, ainda criança na condição de excluídos sociais cujo destino insiste em separar, pondo a amada ora nas mãos de um explorador de menores que a mantém casta para leiloar sua virgindade por um alto preço, ora pelo irmão traidor, Salim (Madhur Mittal), e por fim em posse do mafioso do bairro. Sem um exército para combater e derrotar os inimigos à moda Rama, Jamal encara a vida como o exército de si mesmo e parte com as poucas armas que dispõe: amor, determinação e a sabedoria empírica filtrada pela sobrevivência nas ruas.
Considerando Latika sua razão de viver, Jamal aposta alto, sem nada, mas acreditando ter tudo a perder, movido por um comovente otimismo ingênuo que confronta com a falta de escrúpulos do incorrigível irmão, que repete a obstinação de Jamal na busca dos objetivos, mas contrapondo-o ao deixar de lado todo escrúpulo diante de qualquer coisa que represente um obstáculo. Sem querer, Jamal também mexe com a vaidade do apresentador do programa (Anil Kapoor) que, pela primeira vez se sente abalado diante de um convidado que passa a protagonizar o espetáculo televisivo. Cercado por um mundo que suspeita de toda a honestidade, Jamal é levado a confrontar a truculência de policiais sedentos pela confissão de um aparente golpe perfeito.
A produção é coroada com certos caprichos presentes em alguns detalhes minuciosos na edição que esbanjam simbolismos e reforçam a relação de Jamal à
Ramayana. Na última vez em que reencontra Latika depois de muitos anos, a televisão está ligada no programa "Quem Quer Ser Um Milionário", um close da câmera mostra em um take de apenas três segundos, que a pergunta no vídeo pede o nome de uma formação rochosa no oceano só vista do espaço ligando a Índia ao Sri Lanka. Explicando: a formação nada mais é do que a Ponte de Rama, cujos escritos sagrados da Índia atribuem sua construção pela força de centenas de escravos pelo trecho mais raso do mar, servindo para o Exército de Rama chegar ao reino vizinho para resgatar a amada Sitadevi, assim como Jamal chegava naquele momento para resgatar mais uma vez sua Latika.
DESTAQUE
O grito de
Jai Ho! ou seja, "
There is May Be Victory!", ou simplesmente "
Pode Haver Vitória!" foi responsável por uma das estatuetas que o filme levou em hollywood: Melhor Música. É o carro-chefe de uma competente e bem executada Trilha Sonora (outra estatueta). A faixa
Paper Planes é interpretada pela rapper inglesa M.I.A. e traz o imaginário de crianças marginalizadas em sua busca por algo mais na vida de acordo com a compreenção e os meios pelos quais isso se concretiza na rua.
O trabalho é assinado por A.R Hahman, ídolo que ostenta a incrível marca de 100 milhões de discos vendidos, fenômeno atribuído à revolução na música contemporânea da Índia que promoveu a partir de suas composições. Para entender melhor, tente ficar parado ao ouvir a vibrante
Aaj Ki Raat (
Esta Noite), que traduz o conceito de aventura sobre cada noite de balada, como uma aposta que toda pessoa faz a si mesma com tudo a perder ou ganhar.
Toda a trilha vale ser ouvida. Mas "
Jay Ho!" é a referência - cantada em hindi com um simpático trecho em espanhol antecipando que o filme queria mesmo atingir longe - traz o espírito da persistência de Jamal. Sua execução integral ao final do filme, deixa claro que
Slumdog Millionaire veio para fazer o espectador sair feliz e recompensado da sala, coroando a sensação com créditos apoteóticos do elenco coreografado na estação de trem de Mumbai, além do alívio porque todos serão felizes para sempre, mas tudo isso com um algo a mais que talvez seja difícil explicar. Ainda bem que o mundo do cinema entendeu a mensagem e
Slumdog Millionaire conseguiu ser algo bem maior do que mais um chiclete mental
(veja o trailer).
FRASES MARCANTES
"O que diabos um favelado pode saber"?
"Preferia não saber a resposta para aquela pergunta, se não fosse por Rama e Alá, ainda teria uma mãe".
"Dinheiro e mulher, os dois maiores motivos de confusão na vida. Pelo visto você está metido com os dois".
"A Índia está no centro do mundo e eu estou no centro do centro".
"Esse cara, ele nunca desiste".
"Estava escrito".