sexta-feira, 27 de março de 2009

SLUMDOG MILLIONAIRE (Inglaterra/Índia 2008)


O vencedor de 8 estatuetas carequinhas mostra que fez por merecer a avalanche de reconhecimento na mais famosa premiação do cinema mundial e nos outros grandes festivais por onde passou. Em linhas gerais, Slumdog Millionaire (Milionário Favelado) chegou cumprindo duas missões: introduziu ao cinema de massa do Ocidente novos rostos, a paisagem e os conflitos presentes na Índia urbanóide - em geral reduzida ao Taj Mahal e encantadores de serpentes no imaginário dos habitantes deste lado do planeta - e com um recado claro, gritou ao ouvido de diretores e roteiristas da indústria de filmes do entretenimento fácil e finais felizes para que se permitam subir um degrau em sua estagnada escala evolutiva, principalmente nas etapas de contrução e desenvolvimento de narrativa.

O filme inicia apresentando três linhas de tempo simultâneas, todas em torno do personagem Jamal Malik (Dev Patel), um jovem que serve chá em um call center de Mumbai, cuja fidelidade aos sentimentos de correspondência incerta que nutre por Latika (Freida Pinto) o leva ao mais popular programa de TV da Índia: "Quem Quer Ser Um Millionário?", onde está a uma pergunta de se transformar em herói nacional pelo desempenho surpreendente. Jamal no programa, Jamal na delegacia, a vida de Jamal: as três tramas se misturam em uma bem executada edição em vai-e-vem sem confundir o espectador, sendo as passagens de tempo feitas entre imagens manipuladas sob um requinte poético.

Na tentativa de sintetizar a Índia enquanto cenário, o pecado pode estar na falta de pequenas contextualizações para um mergulho cultural mais proveitoso. Duas oportunidades passam batidas numa mesma seqüencia ao mostrar um grande trauma na vida do Jamal ainda menino. Nela, situa precariamente o país como um caldeirão de turbulências étnicas que culminam com massacres da população de minoria muçulmana por radicais hindus, mas remetendo apenas ao passado, quando fatos semelhantes ocorrem até os dias de hoje. Em seguida, no meio da fuga desesperada de Jamal, a religiosidade hinduísta emerge na aparição do Deus Rama, divindade que representaria a firmeza aos princípios que Jamal precisaria manter diante do acontecimento que acabara de levar sua mãe deste mundo e daria início a toda sorte de sofrimentos.

Mesmo sendo um filme que conta a história de Jamal e não da Índia, seis frases a mais no script resolveriam sem prejuízo pra a objetividade da narrativa poupando o espectador das dúvidas: "Por que saíram matando todo mundo?", "Se tem vários, porque apareceu justo aquele Deus azul?". Religiosidade oriental e questões políticas desprezadas, assistimos ao puro reducionismo ilustrando somente uma mera explicação para a razão do conhecimento de Jamal para mais uma das perguntas feitas durante o programa.

A trajetória de Jamal possui elementos similares à Ramayana, épico da literatura sagrada hindu que descreve a saga vivida pelo Deus Rama em sua encarnação. Durante o exílio, Rama teve sua amada e casta, Sitadevi, sequestrada pelo demônio de dez cabeças, Rávana, que reinava no vizinho Sri Lanka. No filme, Jamal conhece sua eleita, Latika, ainda criança na condição de excluídos sociais cujo destino insiste em separar, pondo a amada ora nas mãos de um explorador de menores que a mantém casta para leiloar sua virgindade por um alto preço, ora pelo irmão traidor, Salim (Madhur Mittal), e por fim em posse do mafioso do bairro. Sem um exército para combater e derrotar os inimigos à moda Rama, Jamal encara a vida como o exército de si mesmo e parte com as poucas armas que dispõe: amor, determinação e a sabedoria empírica filtrada pela sobrevivência nas ruas.

Considerando Latika sua razão de viver, Jamal aposta alto, sem nada, mas acreditando ter tudo a perder, movido por um comovente otimismo ingênuo que confronta com a falta de escrúpulos do incorrigível irmão, que repete a obstinação de Jamal na busca dos objetivos, mas contrapondo-o ao deixar de lado todo escrúpulo diante de qualquer coisa que represente um obstáculo. Sem querer, Jamal também mexe com a vaidade do apresentador do programa (Anil Kapoor) que, pela primeira vez se sente abalado diante de um convidado que passa a protagonizar o espetáculo televisivo. Cercado por um mundo que suspeita de toda a honestidade, Jamal é levado a confrontar a truculência de policiais sedentos pela confissão de um aparente golpe perfeito.

A produção é coroada com certos caprichos presentes em alguns detalhes minuciosos na edição que esbanjam simbolismos e reforçam a relação de Jamal à Ramayana. Na última vez em que reencontra Latika depois de muitos anos, a televisão está ligada no programa "Quem Quer Ser Um Milionário", um close da câmera mostra em um take de apenas três segundos, que a pergunta no vídeo pede o nome de uma formação rochosa no oceano só vista do espaço ligando a Índia ao Sri Lanka. Explicando: a formação nada mais é do que a Ponte de Rama, cujos escritos sagrados da Índia atribuem sua construção pela força de centenas de escravos pelo trecho mais raso do mar, servindo para o Exército de Rama chegar ao reino vizinho para resgatar a amada Sitadevi, assim como Jamal chegava naquele momento para resgatar mais uma vez sua Latika.

DESTAQUE
O grito de Jai Ho! ou seja, "There is May Be Victory!", ou simplesmente "Pode Haver Vitória!" foi responsável por uma das estatuetas que o filme levou em hollywood: Melhor Música. É o carro-chefe de uma competente e bem executada Trilha Sonora (outra estatueta). A faixa Paper Planes é interpretada pela rapper inglesa M.I.A. e traz o imaginário de crianças marginalizadas em sua busca por algo mais na vida de acordo com a compreenção e os meios pelos quais isso se concretiza na rua.

O trabalho é assinado por A.R Hahman, ídolo que ostenta a incrível marca de 100 milhões de discos vendidos, fenômeno atribuído à revolução na música contemporânea da Índia que promoveu a partir de suas composições. Para entender melhor, tente ficar parado ao ouvir a vibrante Aaj Ki Raat (Esta Noite), que traduz o conceito de aventura sobre cada noite de balada, como uma aposta que toda pessoa faz a si mesma com tudo a perder ou ganhar.

Toda a trilha vale ser ouvida. Mas "Jay Ho!" é a referência - cantada em hindi com um simpático trecho em espanhol antecipando que o filme queria mesmo atingir longe - traz o espírito da persistência de Jamal. Sua execução integral ao final do filme, deixa claro que Slumdog Millionaire veio para fazer o espectador sair feliz e recompensado da sala, coroando a sensação com créditos apoteóticos do elenco coreografado na estação de trem de Mumbai, além do alívio porque todos serão felizes para sempre, mas tudo isso com um algo a mais que talvez seja difícil explicar. Ainda bem que o mundo do cinema entendeu a mensagem e Slumdog Millionaire conseguiu ser algo bem maior do que mais um chiclete mental (veja o trailer).


FRASES MARCANTES

"O que diabos um favelado pode saber"?

"Preferia não saber a resposta para aquela pergunta, se não fosse por Rama e Alá, ainda teria uma mãe".

"Dinheiro e mulher, os dois maiores motivos de confusão na vida. Pelo visto você está metido com os dois".

"A Índia está no centro do mundo e eu estou no centro do centro".

"Esse cara, ele nunca desiste".

"Estava escrito".

sexta-feira, 20 de março de 2009

CONTROL (Inglaterra 2007)


Depressivo, autodestrutivo e epilético. A combinação presente no talento musical que o mundo conheceu como Ian Curtis - voz e alma da revolucionária banda Joy Division - é apresentada no início de Control (Controle) por meio de um mosaico de situações que vai destilando o comportamento e as percepções do jovem que cresceu na culturalmente insossa cidade de Macclesfield, nos arredores de Manchester, Inglaterra.

Sem lugar para expandir o seu potencial criativo, Ian (Sam Riley) foi se tornando um jovem introspectivo, indiferente diante do grito de crianças para que devolvesse a bola que escapou da brincadeira e passava próxima aos seus pés, assim como o "bom dia" diário do pai a cada retorno do colégio. Fazia do quarto o refúgio da vida sem cores que julgava levar, dialogando com as folhas de papel onde escrevia poesias, ou local para ouvir LPs de ídolos como David Bowie e Iggy Pop. Finalizado em preto e branco, o filme traduz a melancolia do protagonista mesmo depois sua entrada na banda Warsaw (Varsóvia), rebatizada para Joy Division (Divisão da Alegria) e sua rápida decolagem para o sucesso.

O cultivo do contexto histórico-musical da época transporta o espectador ao clima dos shows que ferviam a cena londrina, a exemplo da banda punk, Sex Pistols, expoente maior de uma época onde a atitude subjugava a qualidade musical, e do performático David Bowie & Spiders Mars, que representava a ruptura ao estilo punk-rock que abastecia o imaginário de Ian Curtis e uma legião de admiradores ávidos por outras experimentações sonoras. Tudo isso em curtos momentos servindo de cenários que testemunharam a convergência entre os futuros membros da banda e o empresário Rob Gretton.

Os últimos anos de Ian Curtis retratados no filme, mostram a vida de um ídolo que não suportou conviver com a bomba-relógio da epilepsia instalada dentro de si e que detonava o sentido de renascimento de cada fato que promovia reviravoltas positivas ou não da sua vida. A construção linear deixa a sensação de uma história rápida, assim como os quatro anos de existência da Joy Division, embora aditivada com algumas sequências longas expondo introspecção e as angústias vividas pelo vocalista que se tornou símbolo da angústia coletiva de uma geração.

Músicas de compasso insistente temperadas com guitarras, baixo e vocal sombrios. A trilha sonora evidencia o legado de uma banda que se tornou ícone da transição do rock com a fusão de texturas eletrônicas e a criatividade no uso de efeitos semi-artesanais como o chiado de sprays e sons de vidros estilhaçando (este último não colocado no filme).

Após a morte precoce de Ian Curtis, em 1980, os demais integrantes da banda fundaram o grupo New Order (Nova Ordem) que se consolidou como sucesso mundial nos anos 80 e 90. O filme é uma oportunidade para conhecer mais sobre a banda que influenciou uma geração seguinte de músicos bem sucedidos como Nine Inch Nails, Radiohead, Smashing Punpking, She Wants Revenge, Franz Ferdinand e The Killers. No Brasil, nada menos que a Legião Urbana, aliás, qualquer semelhança entre a performance de palco de Ian Curtis com Renato Russo não merece o rótulo de injustiça (veja o trailer).



FRASES MARCANTES

"Eu vivo da melhor forma possível, o futuro agora faz parte do meu passado".

"Você é minha, irrecuperavelmente minha".

"Pensei que ataque epilético fosse coisa de tantã".

"Você foi incrível, Ian! Arrebentou, mas me diga quem ganhou a luta dessa vez, o Ian ou o Ian"?

"Quando eu estou lá em cima do palco eles não entendem o quanto eu me dou e o quanto isso me afeta".